INFRA-ESTRUTURAS PARA A VIDA COTIDIANA NA PRÁTICA

Há algum tempo venho falando neste blog sobre a inoperância das administrações públicas no que se refere à criação de equipamentos que possam elevar a qualidade da vida diária dos habitantes das nossas cidades. Concentro a crítica nas administrações públicas porque, por mais bem intencionada que seja a iniciativa privada, há coisas que só o poder público pode realizar ou idealizar, pois a elevação da qualidade da vida urbana não pode ter como objetivo o lucro financeiro.


É prática comum das administrações públicas européias a criação de infra-estruturas para a vida cotidiana, o que significa, entre muitas outras coisas, a construção de novas bibliotecas de bairro, que propiciam a vida cultural e social; a remodelação dos mercados de bairro e dos seus entornos, o que enriquece as relações entre vizinhos; e as muitas propostas para centros de criatividade, aproveitando antigos complexos industriais da cidade. A isso poderíamos agregar centros de saúde, centros esportivos, clubes de convivência, etc. Tudo isso amparado pela construção de ‘habitação protegida’ construída pelo poder público para abrigar não apenas as famílias de constituição tradicional mas também grupos especiais como os idosos, os jovens, etc. Bem igual ao que estamos acostumados nas nossas cidades, grandes e pequenas, não é mesmo?

Um convite do jornal gaúcho Zero Hora para que eu contribuísse com idéias sobre a revitalização do Arroio Dilúvio, em Porto Alegre, me permitiu colocar em prática algumas daquelas idéias. 

 Estado atual do Arroio Dilúvio e da av. Ipiranga. Note-se a borda do Arroio e a falta de tratamento paisagístico. O que há de vegetação não é parte de um projeto global.

O Arroio Dilúvio se estende por mais de 10 km, no sentido leste-oeste, desde a sua nascente até o Lago Guaíba. Ao longo do arroio existe uma avenida de grande importância para o trânsito regional e ao longo da qual se encontram várias instituições de ensino, como o campus médico da UFRGS e o campus da PUC. Dois aspectos chamam a atenção em relação a este curso d’água: a ausência de um projeto paisagístico que pudesse torná-lo um parque linear, servindo milhares de pessoas ao longo da sua extensão e o alto grau de poluição que é evidente pelo seu mau cheiro e pela presença de espuma e de objetos boiando no seu leito –até um sofá já foi visto lá!

Vista aérea com o Arroio Dilúvio em azul

Um breve estudo dos trechos de cidade paralelos à avenida Ipiranga –que acompanha o Arroio quase do início ao fim– indica carência de equipamentos urbanos como os que mencionei acima. A minha proposta visa minimizar essa carência de infra-estruturas para a vida cotidiana, utilizando parte do espaço disponível sobre o arroio para a construção de 10 equipamentos de uso coletivo e público. A área total a ser ocupada pelas novas construções  não representaria nem 10% da extensão do curso d’água.

Vista aérea indicando a posição de alguns dos centros propostos

A condição necessária para a implantação desses centros seria a recuperação do arroio como curso d'água pelo seu saneamento e controle futuro para que não seja poluído novamente. Concomitantemente, toda a borda do arroio deveria ser urbanizada, por meio do plantio de árvores e da implantação de mobiliário urbano de qualidade.

Em termos de uso, esses centros abrigariam atividades como bibliotecas, centros de convivência (para jovens, para aposentados, etc), centros esportivos, centros de saúde de bairro, salões de uso múltiplo, praças bem projetadas, etc. Cada um desses centros de atividade seria composto por uma plataforma que cobriria o arroio e de um edifício de 3 a 4 andares elevado sobre um térreo transparente ou vazado (o que evitaria que o edifício se tornasse uma barreira visual). Na área da plataforma não ocupada por um edifício haveria sempre algum uso esportivo ou uma praça. A criação de novos espaços abertos públicos é fundamental numa área em que há falta de praças e quadras esportivas.

Vista aérea de um dos centros de atividade.É importante salientar o caráter esquemático da proposta. Em caso de realização da mesma cada edifício e plataforma seriam projetados para o fim específico a que se destinassem.




Esta não é uma proposta visionária nem cara. Construtivamente, esses objetos seriam fáceis de construir utilizando elementos pré-moldados metálicos e de concreto, tanto nas plataformas como nos edifícios. Os recursos para sua construção sairiam do orçamento municipal, pois o que se está propondo é que a administração municipal cumpra a sua obrigação, dotando a cidade de equipamentos que podem resultar na tão propalada elevada qualidade de vida de Porto Alegre, hoje um fenômeno meramente virtual.

Esta proposta e mais três foram publicadas por Zero Hora num fim de semana de dezembro de 2010. Curiosamente, mas não de modo inesperado, a resposta das “autoridades” foi imediata. Na segunda-feira seguinte o Secretário do setor “competente” (!) declarou que não há verba para realizar tais propostas e que esse tipo de coisa não é prioridade. Se elevar a qualidade de vida dos habitantes de uma cidade por meio de melhorias no espaço em que habitam não é prioridade de uma prefeitura, quais seriam as suas prioridades? Gostaríamos de saber.

Pelo menos duas são as razões de as nossas cidades serem tão ruins. Uma é o fato de que secretarias importantes são comandadas por políticos e não por técnicos. Outra é a resistência a aceitar idéias de pessoas não envolvidas com a política e a administração pública, algo parecido com a descontinuidade de bons programas quando há troca de partido no poder.

Idéias e propostas para melhorar a cidade não faltam em Porto Alegre ou qualquer outra cidade brasileira. O que falta é vontade política de torná-las realidade e competência administrativa. 

 Vista superior de um centro similar ao ilustrado nas imagens anteriores.

 Vista superior de um centro esportivo, com duas quadras polivalentes e um edifício de apoio.

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12 comentários:

Carlos Goulart disse...

Parece-me que estas propostas não levam em consideração aspectos ambientais. Segundo especialistas nesta área, é questão de tempo até que o Arroio Dilúvio transborde, em decorrência da excessiva impermeabilização de sua bacia. Construir em cima do arroio, presumivelmente, só agravaria este problema.

Carlos Goulart
Porto Alegre

Edson Mahfuz disse...

carlos,

obrigado pelo comentário. no entanto, se tu olhares de novo o texto vais ver que, logo após a terceira imagem, ele menciona a necessidade de outras ações para que qualquer intervenção seja possível ao longo do tempo. está implícita aí a tua preocupação.

qualquer intervenção no arroio sem a correção dos problemas acumulados ao longo de décadas não teria sentido.

por outro lado, o teu comentário evidencia uma característica da cultura do nosso estado, que alguns chamam de "sindrome do caranguejo": toda idéia é logo bombardeada e rejeitada, ao invés de se olhar o seu lado positivo, que neste caso visa melhorar a cidade pata todos. toda proposta pode ser melhorada, se tivermos disposição para isso.

não é à toa que não se faz nada por aqui.

Anônimo disse...

Carlos,
Vc sugere que as edificações do entorno sejam retiradas para não sofrerem quando o Arroio Dilúvio transbordar?
Incrível a sua visão de como evitar problemas futuros na cidade!
Me parece que levar em conta os aspectos ambientais é resolver, na medida do possível, os problemas que afetam o Arroio nunca evitar o bom desenvolvimento da cidade, sobretudo quando se trata de prover de infra estrutura urbana áreas carentes como a apresentada nesse estudo.
Abraço,
Ana Paula Alcantara

arqpadao disse...

Meu amigo Mahfuz era de se esperar este posicionamento dos Órgãos (i)responsáveis de gerenciamento da cidade. Lamentávelmente passa ano e vai ano e não se vê uma atitude profissional e responsável no que tange numa visão mais ampla sobre as cidades e a qualidade de vida das pessoas que nela habitam,
Sua proposta, assim como de seus colegas que expuseram idéias sobre o assunto são no mínimo merecedoras de atenção à mensagem que elas nos passam.
Como já tinhas comentado comigo, este é apenas o lançamento de uma proposta e que naturalmente seria trabalhada para a sua evolução.
Um grande abraço.

Fernando Padão

Eduardo Galvão disse...

Olá meu caro Edson, muito bem vinda a idéia, ocupar a caixa do Dilúvio é uma oportunidade da qual já falamos faz um bom tempo.
Nosssa cidade não tem planejamento, quiçá estratégico. O arremedo de ciência que pretende organizá-la - o PDDU - não passa de determinador de contenedores, que na prática consagra um desenho urbano ultrapassado e, em parte, responsável pela insegurança de nossas ruas. Aproveitando uma carona no teu muito lido blog, divulgo um comentário que vai ao encontro da tua argumentação:
http://projetosemprograma.blogspot.com/2010/12/do-parasitismo-simbiose-evolucao-da.html
Quanto à ocupação do Dilúvio, acrescento que muitas outras áreas públicas estão desaproveitadas, como o enorme canteiro da Rodoviária, as 'terras devolutas' do cruzamento da Silva Só com Ipiranga, e por aí vai. Projetos inteligentes, com programas multi-uso poderiam despertar o interesse da iniciativa privada, que poderia assim financiar o 'excedente' de área a ser destinado para espaços de uso público estrito senso - a boa e velha simbiose dos estudos de Biologia.
No mais, grande abraço e siga-se na luta
Do amigo
Galvão

João Luiz Colvero disse...

Parabéns caro colega Edson, ratifico suas palavras e preocupações em qualidade de vida a priori de qualquer gasto público em ações descentralizadas sem planejamento. Trabalhei anos em Administração Pública e acompanho casos sérios de irresponsabilidade dos governantes através da câmara de arquitetura do CREA Santa Maria/RS e conheço a realidade. Ao caso de não haver cargos técnicos nas direções das secretarias e diretorias é talvez o maior problema, estamos a merce de irresponsaveis agindo visando auto promoção pública, sem conhecimento técnico, em virtude de gestão pública com resultados.

Alexander Laranjeira disse...

Ao vir lendo o texto, ia se formando meu comentário. Mas ao chegar em: "Pelo menos duas são as razões de as nossas cidades serem tão ruins. Uma é o fato de que secretarias importantes são comandadas por políticos e não por técnicos. Outra é a resistência a aceitar idéias de pessoas não envolvidas com a política e a administração pública, algo parecido com a descontinuidade de bons programas quando há troca de partido no poder." me faz somente querer assinar embaixo. Sintético e verdadeiro.
Sobre o comentário de Eduardo Galvão, aqui em Fortaleza lidamos com um PDDU que de "DU" não tem nada. É somente uma cartilha confusa, sem sequer esboçar qualquer intenção planejadora.

Amanda Menezes disse...

Eu fico indignada quando me deparo com essas situações!...o projeto é excelente, tem tudo para funcionar. Agora quem governa parece não estar interessado no bem-estar geral, infelizmente. Quem dera se fossem mesmo técnicos que administrassem cada setor específico do Governo, pessoas bem treinadas e preparadas para assumir seus cargos.
Estou seguindo o Blog. Muito informativo, gostei.

http://aprendizarquitetonica.blogspot.com/

Anônimo disse...

O que tu acha de que se declare uma zona de proteçao em torno do arroio, recuando as construçoes e a avenida uma quadra para trás para se fazer tanto o alargamento da avenida quanto a expansao do comprimento de margem a margem do arroio? Isso seria um projeto impossível de se realizar (ainda que em um prazo longo, de digamos 10 anos)? Creio ser urgente a necessidade de dar espaço e margem pro arroio, por questoes ambientais e de segurança da avenida!

Edson Mahfuz disse...

como tu mesmo dissesste, isso me parece impossível de realizar, tanto porque se trata de uma área consolidada como pelo fato de que não haveria consenso para fazer isso. uma obra desse tamanho levaria anos e correria o risco de não ser completada.

é mais realista melhorarmos o que já temos.

Mércia Construção disse...

Seria ótimo se todos os projetos idealizados acima dessem certo! Pena que sempre é dificil inovar em uma área já consolidada. Ótimo blog. Parabéns

urbanascidades disse...

Edson, desejo a ti, teus familiares e todos os visitantes do teu blog um Feliz Natal. Aproveito para informar que dia 02 de janeiro estreia Urbanascidades 2012, igual mas...diferente.
Paulo Bettanin.