DOIS MODOS DE CONSTRUIR A CIDADE

Nos anos 70 era comum a referência à construção comercial como “especulação imobiliária”. Nos meios intelectuais esse setor da economia gozava da mais baixa reputação e várias publicações alternativas atacavam sistematicamente as construtoras que, com suas obras, ameaçavam destruir a beleza de lugares como a Zona Sul do Rio de Janeiro, para citar apenas um exemplo.

Hoje isso mudou e a indústria da construção civil é reconhecida como um setor importante da economia. Sua importância vai além da economia, atingindo a vida de todos nós, pela quantidade de metros quadrados construídos pelas construtoras comerciais. Pode-se dizer, sem medo de errar, que as cidades em que vivemos ganham forma por meio do que a construção comercial realiza.


E aí está o problema pois, embora muito se fale em “edifícios inteligentes”, a inteligência é exatamente a qualidade que falta à construção comercial no Brasil. Não qualquer tipo de inteligência, pois nossos construtores sabem muito bem multiplicar seu capital. Lhes falta inteligência em relação à cidade, ao urbanismo que inevitavelmente criam. Não se dão conta de que, querendo ou não, sua produção tem um aspecto cultural importante e transcendente, já que a cidade é talvez o maior bem cultural já produzido pelo homem.


Muito raramente vamos encontrar um grande empreendimento comercial que tenha qualidade urbana, no sentido de criar um entorno de real qualidade para quem nele vive, e que contribua para a cidade como um todo em termos da sua sustentabilidade no sentido amplo. Na minha opinião isso se deve ao fato de que o objetivo primordial da construção comercial é pura e simplesmente o lucro, não a elevação da qualidade da vida urbana. Qualquer recurso ou solução de projeto adotada que pareça estar ligada à sustentabilidade só é empregada como parte de uma estratégia comercial, não por convicção ou idealismo. Antes que alguém me acuse de generalização, concordo que há exceções, mas são extremamente raras.


Isso nem sempre foi assim; até meados do século passado ainda se podia encontrar construtoras que visavam conciliar seus interesses comerciais com contribuições positivas para o desenvolvimento das cidades. Havia mesmo um orgulho em fazê-lo. Qualquer capital brasileira tem vários exemplos disso.


Como ilustração do argumento recém apresentado, quero comparar um lançamento recente feito no mercado de Porto Alegre com um projeto similar feito na Finlandia. 
 

A imagem acima mostra um típico grande empreendimento residencial brasileiro. Se poderia resumi-lo dizendo que se trata de um grupo de torres sobre um parque. Parece bucólico, não é mesmo? No entanto, aos olhos do conhecimento urbanístico atual, é mal planejado e não sustentável.

Para começar, não há necessidade de construir em grande altura para atingir densidades altas, como já foi demonstrado há mais de quarenta anos. Não se trata de abolir as torres, mas de usá-las como mais um componente de um complexo urbanístico. Se atingiria uma maior qualidade urbanística construindo edifícios de pouca altura –que preservam a relação do habitante com o solo, melhorando as condições de segurança, de supervisão de crianças, etc– e inserindo uma torre aqui, outra ali, para criar variedade e valorizar a altura.

Embora o projeto indique a existência de espaços comerciais e de escritório entre os edifícios propostos, essas atividades funcionam melhor quando mais próximas às moradias, idealmente como parte dos edifícios residenciais. Um dos conceitos mais compartilhados pelos urbanistas contemporâneos é o de que uma cidade de qualidade tem que ser densa, compacta e multiuso. As diferentes atividades que compõem essa cidade mais vital devem ser agrupadas, senão umas sobre as outras, pelo menos de modo adjacente.

O espaço aberto de uso coletivo é indefinido na sua forma e nos seus limites, exigindo a construção de cercas para garantir a segurança dos usuários. Edifícios baixos construídos na borda dos quarteirões criariam pátios privados para uso dos residentes, sem a necessidade de grades, além de definirem melhor o espaço urbano por excelência, a rua.

Outro problema, já que não há indicação do contrário, é falta de variedade no que se refere a tipos de moradia. Embora a propaganda mencione a existência de casas, isso parece apenas um gesto simbólico sem peso na composição geral. Para ser realmente sustentável, um projeto desse tamanho deveria incluir unidades residenciais para vários níveis de renda, faixas etárias e grupos familiares. Via de regra, esses empreendimentos visam atingir a família típica –casal hetero e 2.3 filhos–, um grupo familiar que vai rapidamente se tornando minoria.

Se confrontados com a minha análise, os empreendedores diriam que isso é “o que o mercado quer”. Mesmo que sua pesquisa de mercado seja confiável –minha suspeita é que não é mais do que o resultado da opinião de meia dúzia de corretores– o público só escolhe o que conhece. Como o mercado não oferece outra coisa que esse tipo de empreendimento, o público só pode querer o que já conhece. Além disso, duvido muito da eficácia de qualquer pesquisa de mercado como indicativo do que se deve fazer. Se Henry Ford tivesse feito uma, talvez ainda estivéssemos andando por aí de carroça1.

Como contrapartida, comento a seguir o projeto vencedor de um concurso realizado na Finlandia, um evento importante que está servindo de exemplo para outras iniciativas em outras partes do mundo. O seu nome já indica suas ambições: Low2No, ou seja, buscava-se soluções que, partindo de uma situação de baixas emissões de carbono, visava chegar a um futuro sem esse problema. Seu objetivo era a apresentação de soluções sustentáveis para o urbanismo, arquitetura e construção, ligados a um tipo de gestão público-privada do desenvolvimento urbano. Aos concorrentes foi pedido que apresentassem soluções para um quarteirão de Helsinki, cientes de que essas soluções poderiam ser tomadas como padrão para desenvolvimentos subsequentes.


Para descrever esse projeto eu poderia simplesmente dizer o contrário do que disse sobre o anterior. Deixando de lado algumas peculiaridades locais –como a preocupação com a quantidade de luz natural, problema que não nos aflige– a proposta se baseia numa série de decisões importantes:

- Mescla de atividades no mesmo edifício, dispondo comércio, serviços e escritórios na base, e habitação nos pavimentos superiores. Isso garante que a rua será movimentada na maior parte do dia, sem nada da atmosfera de bairro dormitório que costuma acompanhar a maioria dos empreendimentos desse tipo.

- Uso das edificações como definidores do espaço aberto, isto é, os jardins e pátios estão localizados entre edifícios.

- O espaço no meio dos quarteirões tem contato com a rua, garantindo o público necessário ao uso das atividades não residenciais.

- Os apartamentos são de vários tamanhos e atendem um público muito variado.

- A construção atende a todos os requisitos básicos de sustentabilidade de um modo real e comprovável.

- A arquitetura não tem cara de coisa requentada, de cópia mal feita de precedentes históricos. Existe um alto grau de autenticidade nos edifícios propostos por esse projeto. 





Propostas desse nível são comuns na Europa. Além de haver uma maior consciência da construção comercial em relação ao seus produtos, as administrações públicas fazem o seu papel e direcionam o que é construído para o bem das cidades. Os construtores não deixam de ter lucro e a cidade ganha qualidade.

Nota 1. “If I’d asked my customers what they wanted, they’d have said a faster horse”, Henry Ford, ao ser perguntado se os clientes influenciavam a sua produção.

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OBS.: Comentários anônimos não serão considerados. Só serão publicados e respondidos aqueles que tiverem autoria (nome + email, por favor). Obrigado.

8 comentários:

Bianca Mayer Ramos disse...

Boa noite,
Acompanho seu blog há mais de um ano e sempre fico muito gratificada por ver que mais pessoas além de mim compartilham de uma opnião que difere dos padrões arquitetônicos brasileiros.
Normalmente só leio os posts e nunca comento, porém, esse último texto chamou muito minha atenção, por ser um dos problemas que eu acho mais agravante no mercado da construção civil brasileira.
Sou uma mera "aspirante" à arquiteta, sou apenas estudante do primeiro ano na PUC-PR, mas, dentro do que já posso acompanhar, entender e opinar, procuro sempre me manter informada.
O problema citado no post é agravado a cada década que se passa. Infelizmente é fácil ver a construção brasileira "empobrecendo" e enganando os futuros proprietários. Criou-se um círculo vicioso que não valoriza a verdadeira qualidade de vida, e impõe padrões que necessariamente nem deveriam existir, por exemplo, o m² caríssimo em áreas ainda não exploradas nem valorizadas. Os padrões dessas construções também deixam o futuro proprietário numa cilada, raramente as construções mais caras usam materiais de alta qualidade e seguem as regras básicas de conforto ambiental.
A arquitetura brasileira ainda tem muito a se desenvolver. O brasileiro talvez ainda não esteja nem preparado para ser receptivo à verdadeira e boa arquitetura, o que é uma pena, e vejo demais aqui em Curitiba, que o luxo é ter apartamento em prédio "Neoclássico", que nem é esse o nome de verdade desse tipo de estilo!!
Espero que possa contribuir futuramente com a boa arquitetura brasileira.
Enfim, quero parabenizá-lo pelo magnífico texto e com certeza, faço de cada palavra sua, as minhas.
Obrigada,
Bianca.

mario yoshinaga disse...

O Edson comenta e nós somos brindados com a reflexão. E refletimos sobre a especulação imobiliária, que não é um assunto só para ser criticado pelos arquitetos, mas por muito mais pessoas, por mais especialistas. Se o mercado reflete a opinião de uns poucos corretores que tem o dom de saber " o que vende", e até manda os arquitetos tirarem terraços, balanços, etc. pelo argumento de que isso não vende, acho que eles estão muito soltos. É preciso que se mostrem outros exemplos, não em revistas, como o fez o Edson com o exemplo da Finlandia, mas algo construido, colocado lado-a-lado com as mesmices do mercado imobiliario. Essas amostras, feitas para vender, para concorrer, para desafiar e mostrar que arquitetura vende, e vende mais que os anuncios nos jornais e na TV. Quem sabe, repetir na arquitetura o caso dos carros nacionais e importados, as nossas carroças, segundo o Collor... lembra...

urbanascidades disse...

Oi, Édson, Feliz Natal. Postei no urbanascidades um selo de qualidade para ti. Participe da "corrente". Abraços, Arquiteto Paulo Bettanin

Mariana Scarpinatte disse...

Que show!

Passando para divulgar:

marianascarpinatte.blogspot.com

Nathalia Hollanda disse...

Olá gostaria de saber mais detalhes dessa obra da Finlândia.. Qual nome do concurso e onde posso encontrar mais informações sobre essa criação..

Mαriαиi ♥ disse...

Parabéns!Adorei seu blog!É difícil encontrar coisas tão boas e inteligentes assim na internet.
visite o meu tbm =D

http://paposobrearquitetura.blogspot.com/

Alexander Laranjeira disse...

Gostei de ver esse tipo de crítica saindo das salas de aula dos cursos de arquitetura. É muito comum em debates entre arquitetos e estudantes ver subir à tona a forma insular dos empreendimentos imobiliários brasileiros, que negam a cidade, seja de forma local ou global. Apesar disso, pouco eu vejo esse tipo de crítica acompanhada de propostas e, o mais importante, voltado ao público em geral. Este último, realmente compra o que conhece.

Alexander Laranjeira disse...

É interessante como ainda enxergamos a rua, o espaço público por excelência como inóspito e hostil. É óbvio que deve haver distinção clara entre o espaço privado e o público, até para que a leitura dessas realidades se complementem e se reforcem. Mas estamos num grau de individualismo tão exagerados nas cidades, e que são aceitos já pelo senso comum como normais, que já não há espaço para uma vida urbana saudável. Nos movendo de escritórios a automóveis, de automóveis a elevadores, de elevadores a apartamentos elevados, vamos nos afastando cada vez mais das vantagens presentes na diversidade urbana.