A DOR ALHEIA COMO NEGÓCIO

Muito se fala na influência da arquitetura e do urbanismo sobre a qualidade de vida. Raramente essas afirmações são acompanhadas de exemplos mas o foco da discussão geralmente são os efeitos positivos dos bons edifícios e dos espaço urbanos bem concebidos na vida das pessoas.

Estou de acordo com isso, mas gostaria de expandir a discussão chamando a atenção para o fato de que pouco se fala dos efeitos da má arquitetura e do urbanismo equivocado, na minha opinião até mais relevantes para a nossa vida, pois são mais notáveis e nocivos.

Um ambiente desqualificado pode transformar atividades agradáveis em rotinas intermináveis, pode alterar nosso humor sem que saibamos a causa, no limite pode até prejudicar nossa saúde. Recentemente tive a oportunidade de encontrar um caso em que a arquitetura tem o poder de influenciar negativamente o estado de espírito das pessoas.

Infelizmente, neste verão tive que ir duas vezes ao Crematório Metropolitano de Porto Alegre para abraçar os familiares de duas pessoas queridas que haviam falecido. Tarefa nada agradável mas obrigatória. A situação já é por si só difícil, mas fica ainda pior quando o ambiente onde se realiza o velório não é qualificado.

Dizer que o local onde os velórios aconteceram não é qualificado é pôr panos quentes sobre um edifício lamentável, que uma sociedade mais consciente que a nossa repudiaria imediatamente. A começar por um acesso frontal desprotegido e estreito, e uma entrada pelo estacionamento realmente indigente − ninguém se deu conta de que há décadas as entradas pelo estacionamento se tornaram importantes! Nesse acesso secundário temos que falar por um interfone com alguém que nos pergunta o que queremos! O que posso querer em um lugar em que se vela pessoas? Além dessa recepção hostil, os que chegam pelo estacionamento têm que subir no mesmo elevador utilizado para levar os caixões ao andar superior!! A seguir, um sistema de circulação labiríntico, em que não se tem noção alguma de onde estamos e para onde podemos ir.

As salas onde os falecidos são velados são mal dimensionadas − além de mal proporcionadas − o que obriga os presentes a sentar-se num espaço ao longo da circulação geral, onde é comum se misturarem os participantes do velório com os funcionários do crematório, que passam por ali a todo momento. Junte-se a isso um ‘sistema’ de ar condicionado ineficiente e a ausência total de qualquer relação com o exterior e temos um ambiente tétrico, indigno do que se desenrola no seu exterior.

Completando esse quadro lamentável, um aspecto típico da vida no século 21: o comercialismo descarado, estendido a todas as atividades humanas. Enquanto velam um ente querido as pessoas são obrigadas a ver propagandas do crematório em um monitor de TV!!!! Obviamente, logo adiante nesse espaço ambíguo em que se acumulam todos os tipos de usuários há um balcão de vendas dos produtos anunciados no monitor.


Na minha opinião a origem de tudo isso é que nem os proprietários nem o arquiteto responsável tinham a menor idéia do que estavam fazendo, do tipo de edifício que estavam por construir. É nesse momento que é preciso ter conhecimento, ter experiência do mundo, não apenas dinheiro e um diploma universitário.

Se os envolvidos possuíssem esse conhecimento, entenderiam que um edifício desse tipo não é qualquer edifício, que possa ser resolvido como quem projeta uma loja ou escritório. Ali se desenvolve um ritual milenar, em que as pessoas se consolam mutuamente e se despedem de alguém que foi importante nas suas vidas. Esse tipo de edifício tem que ser de algum modo especial, seus espaços devem transmitir calma e esperança a todos que estão passando por esse momento difícil.

Em inúmeros exemplos pelo mundo afora, arquitetos têm procurado introduzir a natureza nos lugares onde as pessoas se despedem dos seus mortos, por meio de vistas para jardins ou pequenos pátios internos, aberturas superiores − tanto para que se possa olhar para o céu como para trazer luz natural para o interior −e até mesmo lâminas d’água.

No entanto, nesse edifício lamentável os interiores são escuros e anódinos, e não há qualquer sinal do exterior − é como se todos estivessemos numa sepultura. Nem mesmo da cafeteria no último piso há uma boa vista do exterior!

Não gostaria de terminar de um modo pessimista, por isso sugiro que olhem as imagens abaixo, de um edifício que abriga a mesma atividade, na cidade de Leon, Espanha, cujo autor é o arquiteto Jordi Badia. Além da qualidade do espaço interior há uma preocupação em tornar o edifício menos evidente, integrando-o ao parque por meio do rebaixamento do seu nível térreo e de uma cobertura que é um espelho d’àgua. Vale lembrar que se trata de obra pública, ao contrário da que comentei acima.

Motivado pelas observações acima, elaborei um projeto alternativo de crematório para o mesmo terreno. Clique aqui para ver esse projeto (e uma vez lá, clique sobre a imagem para mudá-la).







__________________
OBS.: Comentários são muito bem vindos e será um prazer respondê-los mas só serão publicados e respondidos aqueles que tiverem autoria (nome + email, por favor). Obrigado.


5 comentários:

Raul Gobetti disse...

Ola Edson... parabéns pelo blog e por seus projetos... já li muita coisa que você escreveu... gosto muito de suas observações sobre a arquitetura moderna... o tópico sobre o Museu do Pão concordo em gênero, número e grau... criei um blog recentemente para divulgação de meus trabalhos profissionais e de faculdade, a fim de facilitar contatos com grandes escritórios, onde gostaria de trabalhar... Dê uma olhada lá... http://raulgobetti.blogspot.com
Abraço!!!

Anônimo disse...

Prezado Mahfuz, há dez anos vivi a experiência de projetar um cemitério nos arredores de Belém. Durante as minhas "pesquisas" para o projeto, além da dificuldade de achar material bibliográfico sobre o assunto, também encontrei, aqui, um cenário semelhante ao que te referes em teu post. Desolador... Se tiveres tempo e interesse de ver o que fizemos, acessa http://www.meiadoisnove.com.br/projobras_nsn.htm
Um grande abraço,
Bassalo

Anônimo disse...

Olá, Mahfuz. Não há o que discordar de você neste texto. Me lembrei de imediato de um livrinho que eu li no início da faculdade de arquitetura: Dimensão Oculta de Edward T. Hall. Me lembro que ele falava de como as relações espaciais interferiam diretamente na nossa rotina diária.
Conhecia o tabalho de Jordi Badia por outras obras. Realmente ele é um arquiteto excelente.
Abraço

Anônimo disse...

Como Saulo falou, citando Hall, fico cada vez mais convencido da importância da psicologia ambiental para a nossa arte-ciência, da arquitetura. Mas no nosso caso, tão importante quanto tentar compreender as necessidades objetivas e subjetivas dos usuários de nossos prédios é transformar esses dados em informações de projeto, de linguagem. Muito interessante ver no seu texto a abordagem ao mesmo tempo teórica e projetual.

BlogPortobello disse...

Virei sua fã!
Escrevo para o BlogPortobello, sou estudante de arquitetura e admiro cada vez mais seu blog!
Me encontrei aqui!
Deveria escrever em nome do blog, mas não me contive!
Sempre procuro escrever assuntos pertinentes e inteligentes no blog, mas, como não é meu, não consigo fazer isso 100% do tempo!
Acho que você irá gostar dos textos da Jane Jacobs!
Gostaria muito de receber sua visita!
Abraços
Amanda Vieira