GRITANDO SEM TER O QUE DIZER


Passo constantemente pelo edifício ilustrado acima, situado numa importante avenida de Porto Alegre. Confesso que não o entendo, e suspeito que o mesmo deve acontecer com outras pessoas.

O estranhamento se baseia em duas premissas. Em primeiro lugar, se trata de um edifício de escritórios, um tipo de edifício de grande simplicidade espacial, o que não justificaria a profusão de elementos que o compõem. Para quem não sabe, o edifício de escritórios moderno, há quase um século, consiste em uma planta livre (para poder ser subdivida à vontade) e um núcleo compacto de circulação vertical e serviços. Ou seja, todos os elementos fixos —elevadores, escadas, sanitários, depósitos, etc— são reunidos para dotar o resto da planta da maior flexibilidade possível.

Em segundo lugar, um exame da melhor arquitetura do século 20 e 21 mostra que a forma é sempre uma síntese do programa de atividades que um edifício deve atender, do lugar em que é construído e das técnicas construtivas disponíveis.

Voltando ao edifício em questão, nenhuma dessas premissas parece ter sido levada em conta no seu projeto. Qual é a logica da sua concepção? Porque o tratamento de fachadas muda abruptamente, já que o espaço atrás delas é rigorosamente o mesmo? Em qualquer das fachadas, os peitoris são interrompidos ou mudam de tamanho sem qualquer razão aparente, pois é óbvio que não há fatos interiores que o justifiquem.

E o que dizer da lâmina que secciona o edifício em dois? Qual a sua função no conjunto? Alguns já a compararam com a parte superior dos elmos medievais, mostrando como temos que recorrer a metáforas para entender coisas que fogem ao nosso entendimento.

Se por um lado posso entender esse edifício como parte do mundo sensacionalista em que vivemos —"todo edifício tem que causar impacto, deve possuir uma forma insólita para chamar atenção em um meio urbano caótico do ponto de vista visual"— do ponto de vista da arquitetura como produção cultural ele me parece bastante problemático.

Como atitude genérica é um objeto estridente que não transmite mensagem alguma: é como uma pessoa mal educada que grita em local em que a discrição seria a única atitude recomendável. Sendo um atividade banal no conjunto da cidade, não há porque um edifício de escritórios ter tanta presença no meio urbano. A solução ignora a hierarquia natural dos componentes da cidade e contribui para exacerbar o caos visual contemporâneo.

No específico, é uma forma sem lógica, arbitrária e caprichosa. Seus elementos mudam de configuração (como os já mencionados peitoris) sem outra razão que a vontade do projetista. A lâmina que secciona o volume, além de supérflua e fora de escala, prejudica a vista expcepcional que as fachadas de vidro poderiam oferecer. Imagine-se trabalhando sentado junto ao vidro, bem ao lado dessa parede, nos andares superiores do edifício: a vista, que poderia dominar toda a cidade a oeste da avenida Carlos Gomes, fica reduzida a 50% da sua amplitude. O elemento decorativo se transforma numa viseira de cavalo.

E o que dizer das fachadas de vidro constantemente expostas ao sol? Pode-se argumentar que os vidros são de última geração e que o sistema de ar condicionado é poderoso. Mas tudo isso tem um custo elevadíssimo de instalação e manutenção e, embora o edifício seja de propriedade privada, acaba tendo impacto sobre todos, pois consome energia que poderia ser usada de outro modo.

O que será das cidades se todos os edifícios forem projetados desse modo, cada um tentando ser mais estridente que o anterior? Breve todos teremos que andar pelas ruas usando viseiras e olhando para o chão.


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OBS.: Comentários são muito bem vindos e será um prazer respondê-los mas, por favor, identifique-se (nome + email), para eu poder saber com quem estou me comunicando. Obrigado.


8 comentários:

projetos e obras de arquitetura avançada disse...

FALOU TUDO...MAS DESCONFIO DE UMA COISA: SERÁ QUE ESSA FACHADA DE VIDRO NÃO FEITA COM O PROPÓSITO DE "DUPLICAR" O MARAVILHOSO "NEO-CLÁSSICO" LINDEIRO? AFINAL, AQUELE PRÉDIO FEZ TAAAAANTO SUCESSO QUE, TALVEZ, QUEIRAMOS VÊ-LO DUPLAMENTE...

Edson Mahfuz disse...

não sei se foi essa a intenção, mas o certo é que, durante o dia, o reflexo do fantástico vizinho se encaixa na metade mais envidraçada da fachada norte.

qual seria o significado disso: puro acaso? duplicar a maravilha vizinha? fazer o seu próprio edifício desaparecer?

abraço.

Pedro Mozart disse...

Mahfuz,


Que bom que não leio seu blog todo dia. Pois li as suas postagens aqui, até o final desta página, terminando com o comentário sobre o terreno do jóquei.
É muito deprimente essa tristíssima realidade da Arquitetura que vivemos hoje (hoje? desde quando estamos assim? Desde o séc.XVI?). Nenhum tipo de planejamento urbano decente, construindo e destruindo cidades somente como acontecimentos isolados, de acordo com a vontade do rei ou de seus prepostos, uma coleção de espasmos projetuais individuais e desconectadas com nada a não ser, atualmente, a mídia, o marketing, o "mercado" ou a busca incessante da "genialidade arquitetônica", novos niemeyers a serem descobertos e incensados.
Chorar? Ranger os dentes? Ficar verde de raiva e nas raias do desespero ao ver a quantidade de possibilidades jogadas fora, desperdiçadas, para que o país pudesse ter algum tipo de melhora na qualidade de vida urbana?
Uma pena, uma grande pena. 170 bilhões? Confesso não ter noção do que poderia ser feito com isso, em termos de habitação popular. Mas com certeza poderiam ser estabelecidas metas e planos de edificar não somente pombais e caixotes mal-ajambrados tomados por antenas imbecilizantes de TV, mas pensar em espaços dignos, multifuncionais, fazendo cidades de verdade, não o arruamento de guetos que se pratica usualmente nessas paragens.
De certa forma, ainda bem que acabei saindo do exercício da arquitetura, apesar de apaixonado por ela. Mas vê-la nesse estado, a cada dia que passa mais e mais lastimavelmente querendo somente as "estridências", deixando de lado conceitos mais amplos e perenes, mais adequados à realidade ambiental em que vivemos, praticados mormente nas velhas e admiradas cidades européias...

Que bom que não leio o seu blog todo dia.

Forte abraço! :-)

Pedro Mozart

Anônimo disse...

Essa "alça" realmente nao acrescenta NADA, e deve ter custado MUITO... ...grande textinho!!! muito elucidativo, com poucas palavras: ótimo para que se possa explicar a nao-arquitetos a causa de nosso desapontamento, a maior parte das vezes nao entendido por eles...

Abraço, saudades, Nico.

Anônimo disse...

Mahfuz: Excelente o texto! Sintetizou com simplicidade e clareza o significado e a mediocridade daquela "aberração"...

Anônimo disse...

Excelente texto.

Esse prédio me atraia bastante visualmente falando.
Mas hoje vejo o quanto esse tipo de coisa é desnecessária.

Lembro de ter visto matéria a respeito deste prédio em alguma revista aleatória. Parece que justificavam essa "lâmina" como sombreamento de fachada (?), discorrendo sobre a necessidade de diversos profissionais envolvidos para cálculo da estrutura da lâmina, resistência aos ventos, etc.

Edson Mahfuz disse...

jorge luis,

quem comete essas barbaridades recorre a tudo para justificá-las.

o argumento é tão fraco que chega a ser patético. ainda que a tal lâmina protegesse realmente, e as outras fachadas, não seriam protegidas?

imagine o custo desse elemento, um recurso que poderia ser muito melhor empregado protegendo realmente as fachadas com quebra-sóis discretos e eficientes.

abraço.

Alexandre Bento disse...

Fico muito feliz, em ver que ainda existe salvação para a Arquitetura que acredito, ou seja, uma arquitetura pura e sem exageros, o que a meu ver têm mais haver com o nosso estilo de vida.
Não vemos ninguém andando pela rua com um manto branco, com arrudas atrás da orelha, tocando harpa.
Pois é, acredito que quem compra um apartamento nesses "novos " empreendimentos com fachadas neoclássicas deveria também procurar se vestir dessa forma.
Forte abraço !